sexta-feira, outubro 12, 2007

Experiência

Pensamos que a objectividade acontece. Que eu sou um determinado corpo, distinto daquela árvore, onde ocorrem processos distintos. Que o vasto oceano existe e que aquela praia é paradisíaca. Que, o que fui no passado, sou já só na memória e que, o que sou no presente, deixarei num instante de ser, para passar a ser memória que, eventualmente, deixará de o ser, se vier a sofrer de alguma demência. Que há leis matemáticas, lógicas e científicas que podem ser escritas em papéis ou computadores e que podem ser compreendidas pelas mais diferentes pessoas, não deixando lugar para mais do que uma interpretação, uma vez compreendidas correctamente. O seu significado encontra-se completamente fixado. Que percepcionamos, muitas vezes, sem nos apercebermos de que nós estamos a percepcionar, apreendendo acriticamente a realidade, de um ponto de vista que poderia não ser o nosso, desde que outra pessoa ocupasse o lugar que naquele momento ocupamos.

Porém, quando lançamos um olhar crítico a todos esses acontecimentos, deparamo-nos com a sua relação connosco e com a nossa posição em relação a eles. Questionamo-nos se somos de facto um corpo, se não seremos afinal aquela árvore pensando que é este corpo, se realmente o vasto oceano existe ou se aquela praia é paradisíaca, se o tempo realmente existe ou se a mudança não será em tudo ilusória, se as leis matemáticas, lógicas e científicas são realmente leis ou se os nossos axiomas estariam errados, se há evidências que as refutam e por que são evidências, em que se fundamentam, se realmente percepcionámos o que julgávamos ter percepcionado ou se era apenas uma projecção da nossa mente, ou uma extensão de nós próprios, nós próprios, se o que percepcionámos é matéria ou ideia, o que é.

Quando lançamos um olhar crítico sobre a realidade, pomos em causa os fundamentos e aparências de tudo o que vimos a conhecer, tudo aquilo com que vimos a tomar contacto, inclusive nós próprios. Pomos em causa a nossa existência e o nosso modo de ser e, para que isso aconteça, entramos necessariamente no domínio da intimidade, que é aquilo que pensamos ser mais propriamente, porque é aquilo que nos diferencia, enquanto seres pensantes e, acima de tudo, de experiência, de todos os outros.

Quando queremos saber o que é a realidade, no seu todo, o que a constitui, entramos necessariamente no domínio da experiência subjectiva, íntima, porque ela é parte da realidade e, mais propriamente, é a fatia da realidade com que estamos, aparentemente, mais familiarizados e que acontece sempre, mesmo que só o venhamos a perceber no futuro. Toda a minha experiência, tudo o que digo, faço, vejo, compreendo, é minha experiência. É impossível que a desligue de mim, caso em que não seria de todo experiência. Eu próprio, dou-me a conhecer-me enquanto experiência, quando me reflicto sobre mim próprio, porque vejo-me como algo que está a experimentar e que, no seu experimentar, é ele próprio experiência, um algo que está a acontecer. A experiência é acontecimento. E é o acontecimento em que há um sujeito que é experiência, um objecto que não é o sujeito e que é experiência, e um sujeito que experimenta um objecto que é experiência.

A subjectividade acontece quando as duas experiências objectivas, a de ser sujeito e a de ser objecto, se ligam, dando origem àquela. A intimidade, porém, é a experiência que o sujeito tem quando reflecte sobre a sua experiência de si, ou sobre a sua experiência do mundo, isto é, a sua posição em relação ao mundo. A intimidade está um passo para lá da subjectividade; é, por definição, mais profunda, porque mostra, numa pintura com laivos de abstracção, o que o sujeito é, através da sua relação consigo e com o mundo, das suas tomadas de posição. Aí, podemos dizer que, através da lógica, o sujeito pode inferir que é de tal ou tal modo, a partir das suas acções e da sua ideia do que as coisas objectivamente são, por exemplo, o bem e o mal e se agiu de acordo com um ou outro.

Porém, essa logicização de si, não lhe dará tudo aquilo que ele é - nem o que é mais propriamente - pois ele próprio é experiência (mais propriamente experiência de si em relação a si e ao mundo) e essa experiência, que contém, em si, irredutibilidades várias, como seja a experiência estética, amorosa, religiosa, ou a do fundo de si (do seu ser ontológico) que são totalidades experienciais imediatas de variação infinita, porque se dão como uma totalidade, no imediato e, também, porque não se esgotam no imediato, mas apresentam-se, seguidamente, de novo como misteriosas totalidades, só pode ser dada na experiência e é esse, propriamente, o seu carácter, que não pode ser reduzido, sem que deixe de ser o que é.

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