sexta-feira, outubro 12, 2007

O fundo de tudo

Na verdade, se digo que há uma única categoria ontológica e que há diversos modos dessa categoria se apresentar, não posso dizer que essa categoria são sentimentos mas, que, é o sentimento.

Outra questão: se disse que as emoções são ontologicamente mais básicas do que os sentimentos, como posso dizer que o sentimento é a categoria ontológica básica? Na verdade, parece que a emoção aparece antes do sentimento, e os corpos antes da emoção, mas isso é a maneira, a cronologia, do aparecimento das coisas a nós. Por o sentimento nos aparecer depois, não quer dizer que não seja ontologicamente mais básico.

Na verdade, é necessário que aquilo que é ontologicamente todas as coisas, contenha em si todas as coisas. E o sentimento é um candidato melhor do que a emoção, porquanto a emoção é apenas presente e o sentimento vai para lá do presente.

Mas, se deve conter em si todas as coisas, o que dizer do raciocínio? O sentimento contém o raciocínio? Não parece. O raciocínio contém o sentimento? Não parece. Mas a mente contém ambos. Mas não queria dizer que a mente é a única categoria ontológica, porque me parece que ela é apenas uma palavra para os diversos modos dos sentimentos, das imaginações, das memórias, etc.

É como que um conjunto das várias capacidades mentais. Em si, não existe a mente, mas apenas as capacidades mentais.

Podemos reduzir umas a outras? Não parece. Podemos dizer que são todas elas consciência, o que seria errado, porque embora a consciência seja necessária e suficiente para que nos apercebamos delas, é diferente, por exemplo, da inteligência, porque uma coisa é ver uma coisa a seguir a outra, e outra coisa é ver uma coisa seguir-se de outra.

No entanto, poderíamos dizer que a inteligência é um modo da consciência, tal como pode dizer-se que o ser finito é um modo do ser infinito, pois a diferença que encontramos em "uma coisa a seguir a outra" e "uma coisa seguir-se de outra" é "a seguir a" e "seguir-se de". No primeiro caso, as coisas estão desligadas uma da outra, que é o caso da consciência pura, no outro, estão ligadas uma à outra, que é o caso da inteligência consciente.

Na verdade, podemos perguntar-nos se existe tal coisa como uma inteligência pura, uma inteligência não consciente. Porquanto nos parece que o sentimento é incapaz de gerar inteligência, parece-nos que uma inteligência pura, sua condição suficiente e necessária, seria capaz de gerar sentimentos. Na verdade, seria capaz de gerar tudo.

Mas o que é a lógica pura, senão um conjunto de operações sobre lugares por preencher? Se não há nada que os preencha, não podem ser preenchidos. E isto leva-nos a pensar que uma inteligência pura seria incapaz de gerar todas as coisas. A menos que digamos o seguinte: é tão inteligente, que consegue gerar aquilo que preenche os lugares, consegue gerar tudo.

Na verdade, de entre as capacidades mentais, a inteligência é aquela que parece ser mais suficiente para gerar as outras, porque podemos imaginar que assim fosse, enquanto nos é estranho imaginar que a emoção ou o sentimento fossem capazes de tamanho portento. Há quem diga que não: que a emoção ou o sentimento têm um poder tal que são capazes de gerar tudo; um poder irracional, força bruta, que somos incapazes de compreender mas, apenas, de sentir.

Na verdade, a causa da existência e da nossa existência é de tal modo inexplicável, incompreensível, parece-nos de tal modo estranha, estranho que algo tenha vindo a existir e a existir como é, que, às tantas, procuramos senti-lo, compreendê-lo na nossa capacidade intuitiva, irracional, o que acontece geralmente nas religiões. É, provavelmente, a crença de que somos incapazes de racionalizar a causa, o fundo, mas que podemos encontrá-lo na emoção e no sentimento.

Se o encontramos, podemos tentar descrevê-lo, enquanto fenómeno que se dá nessa experiência. Na verdade, o homem não é senão experiência, quer a priori quer a posteriori e, na verdade, não existe propriamente experiência a priori, anterior à experiência, o que é contraditório. Claro, normalmente, a priori é entendida como sem recurso a objectos materiais. Mas, mais uma vez, essa experiência ocorre com recurso a memórias de objectos materiais passados e os processos lógicos ou matemáticos empreendidos foram aprendidos em relação a objectos materiais, laranjas e feijões. Mas nem tudo tende para um lado e também é claro que, uma vez aprendidas essas operações, elas podem ser efectuadas sem relação a objectos materias, excepto ao próprio corpo, que as pensa. E, por isso, embora essa experiência, na sua relação subjectiva, seja relação de um pensamento ou pensador com um objecto do pensamento, pensado, ela é sempre, na sua existência objectiva, experiência de um corpo. Mas estamos a afastar-nos do nosso tema, que era a categoria ontológica única.

A única conclusão que podemos tirar é que ela é irracional (ou emoção, ou sentimento) ou racional (ou imaginação, ou inteligência). É curioso que não tenhamos incluído a memória, o desejo ou a consciência. Atrás, já tentámos introduzir a consciência. Talvez possamos afirmar que todas as capacidades mentais são modos de uma mesma coisa, a que chamaríamos mente e, portanto, mente não seria apenas uma palavra sem referente, como foi atrás sugerido. Porém, que dizer dessa coisa, dessa coisa que seria o equivalente à substância? Não podemos dizer nada dela, excepto que origina as capacidades e que não é nenhuma delas (ou que é todas). Se disséssemos que é todas, conhecê-la seria conhecê-las e relacioná-las.

Platão diz que as coisas se geram dos seus contrários e, a aceitarmos a sua tese, diríamos que o racional se gera do irracional e o irracional do racional. Penso que a ideia é que o irracional se transforma no racional, este no irracional, este no racional, e assim ad infinitum, um pouco como quando falámos entre a variação infinita ordem-caos. Porém, somos mais capazes, é essa a nossa natureza (ou parte dela), de compreender que o racional possa gerar o irracional, porque podemos compreender que uma inteligência pura seria capaz de gerar o irracional, na verdade, capaz de gerar todas as coisas. Ao passo que isso não acontece com o irracional, a menos que digamos que é uma força bruta tal, uma bestialidade tal, que gera tudo. E, aí, sentimo-lo, mas não o explicamos.

Somos capazes de imaginar que, se fôssemos suficientemente inteligentes, seríamos capazes de gerar matéria só com a inteligência. Mas há algo que precisamos de acrescentar: é que uma inteligência pura seria também imaginação e vontade puras, porque seria capaz de imaginar qualquer coisa e seria capaz de fazer qualquer coisa segundo a sua vontade. E seria também memória pura, porque seria capaz de se lembrar de tudo. E seria capaz de sentir e de emocionar-se. Ao passo que, por exemplo, uma memória pura seria apenas capaz de lembrar, uma vontade pura apenas capaz de ter vontade, uma consciência pura apenas capaz de ser consciente.

Ou talvez não, no caso da consciência. Porque se algo se segue de algo em vez de se seguir a algo, temos de dizer que uma consciência pura teria de estar consciente desse facto, caso contrário não seria consciência pura. E que uma consciência pura seria capaz de lembrar todo o passado. Porém, se dizemos que ela seria capaz de lembrar o passado, dizemos que o passado é algo que está acima dela. Uma consciência pura seria incapaz de gerar o tempo. Na verdade, se não houvesse tempo, ela seria sempre presente, porque a consciência é como que inoperativa, é um espectador. A realidade acontece. E a memória refere-se apenas ao passado, por isso também não é candidata a ser a categoria ontológica básica, já que há também presente e futuro. A imaginação, porém, pode referir-se a todos os tempos. Mas a imaginação não se refere ao que acontece, mas ao que não acontece. Por isso, também está excluída.

Resta-nos, por um lado, a inteligência (racional), por outro, a emoção, o sentimento e a vontade (irracionais). Será que alguns podem ser reduzidos a outro? Será que tudo isto está errado e que a categoria ontológica básica é a matéria ou a energia? Será que é a ilusão? O que é?

Se identificarmos o fundo do humano com o fundo do Universo, a categoria ontológica única não é a matéria nem a energia, porquanto a intimidade, a subjectividade ou a experiência, podem ser energia, são mais do que isso.

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